VÓRTEX (2021): A distopia de um amor.
Entendo a arte do cinema como uma experiência não somente sobre entretenimento, como também terapêutica, podendo ser repetida por diversas vezes, conquistando quem sabe novos
sentimentos e desbravando outros âmbitos emocionais não encontrados da primeira
vez. Um (a) diretor (a) pode possuir diversas possibilidades identitárias e
rubricas pessoais, portanto, fortaleço a ideia de que cada obra é uma nova
alternativa, um outro objeto imaginário que desenrola inúmeras variáveis
inverossímeis. Claro que existem aqueles que desenvolvem suas carreiras feito um
álbum cinematográfico para ser desbravado como um todo, bem como acontece na
música, por exemplo, promovendo um universo bastante próprio.
Pois bem, preciso dizer que Gaspar Noé
realmente tem o dom. Intriga e amarra seu público durante horas num transe
ininterrupto graças à técnica apurada e instinto voraz de trazer à tona
contextos polêmicos, difíceis e incômodos. Desta vez, o autor chama atenção
pela sua constante retrô melancólica. Num dos momentos de sanidade e angústia,
nasce “Vórtex”, a diáspora do fim, como se observássemos entre piscadelas o
mundo de um casal de idosos escravizados por suas incoerências crônicas e uma
tonelada de cápsulas “antivida”.
Tudo começa com um encontro bacana, janela a
janela. Um belo café da manhã a luz de um sol tímido e parcialmente bloqueado
por nuvens prontas para se desmanchar. Eis a França, pleno subúrbio. Abrigando duas
vidas acidentadas que se dividem em duas telas na vertical durante quase a
totalidade da obra. Categoricamente, somos subvertidos a partidos pró a um, pró
a outro – o tempo todo. Nada faz sentido a partir do espaço de tempo entre o
escrito de um senhor teimoso na “bolha” do escritório e a atrofia mental de uma
senhora encarcerada nas próprias escolhas e condições fisiológicas irreversíveis.
O mais bacana aqui é que estamos assistindo
a um excêntrico drama também sobre saúde mental e decisões chave, sobre como
construir e destruir retratos de jornada a partir do paralelo ínfimo na
espessura de um fio de cabelo sustentando um disco de vinil anos 50 na vertical.
Para qual lado ele tomba? No limiar de suas vidas, nossos heróis são
constantemente expostos ao complexo de seus fracassos e perdas. É incrível
pensar como a mente humana pode saturar ferozmente. A obra mesma complementa,
entrelinhas: “o cérebro decompõe antes que o coração”. A beleza de Vórtex traz
este viés, o confronto da razão e a emoção.
O que nos soa insensível, para eles é uma
condição de vida ao qual presenciamos como hóspedes ilustres durante poucos
dias convertidos em recortes. Amor pode doer, a culpa corroer e a convivência
escurecer os dias mais ensolarados. Advertências também cabem quanto a
capacidade de equilibrarmos nossos rumos mentais e profissionais com as
questões familiares e exemplos repassados aos herdeiros, afinal de contas, no
fim da caminhada não passaremos de singelas memórias dos nossos filhos.
Tendo em vista o desenvolvimento e inteligência em coordenar jogos de câmeras, imagens em miúdos e sensibilizar com atuações fantásticas dos mestres Dario Argento e Françoise Lebrun, Cannes aplaudiu com louvor um dos melhores filmes franceses dos últimos anos que apresentou notável capacidade em gerar reflexão sobre o que estamos fazendo com o pouco de plenitude que nos resta. Eis, então, a distopia de um amor.
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